terça-feira, 3 de julho de 2012

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Drummond

quarta-feira, 27 de junho de 2012

então tá combinado, é quase nada.


Se era amor? Não era. Era outra coisa. Restou uma dor profunda, mas poética. Estou cega, ou quase isso: tenho uma visão embaraçada do que aconteceu. É algo que estimula minha autocomiseração. Uma inexistência que machucava, mas ninguém morreu. É um velório sem defunto. Eu era daquele homem, ele era meu, e não era amor, então era o que?
Dizem que as pessoas se apaixonam pela sensação de estar amando, e não pelo amado. É uma possibilidade. Eu estava feliz, eu estava no compasso dos dias e dos fatos. Eu estava plena e estava convicta. Estava tranqüila e estava sem planos. Estava bem sintonizada. (...) Parece o final de um amor, mas não era amor. Era algo recém-nascido em mim, ainda não batizado. E quando acabou, foi como se todas as janelas tivessem se fechado às três da tarde num dia de sol. (...) Quem pode explicar o que me acontece dentro? Eu tenho que responder às minhas próprias perguntas. Eu tenho que ser serena para aplacar minha própria demência. E tenho que ser discreta para me receber em confiança. E tenho que ser lógica para entender minha própria confusão. Ser ao mesmo tempo o veneno e o antídoto.
Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. (...)
Eu sei, não precisa me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entre adultos. Talvez seja este o ponto. Talvez eu não seja adulta suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça de acreditar em contos de fadas, de achar que a gente manda no que sente e que bastaria apertar o botão e as luzes apagariam e eu retornaria minha vida satisfatória, sem seqüelas, sem registro de ocorrência?
Eu nunca amei aquele cara. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada. Não era amor, era uma sorte. Não era amor, era uma travessura. Não era amor, era sacanagem. Não era amor, eram dois travessos. Não era amor, eram dois celulares desligados. Não era amor, era de tarde. Não era amor, era inverno. Não era amor, era sem medo. Não era amor, era melhor.


Martha Medeiros



Não tem nenhum engano nem mistério.
É tudo só brincadeira e verdade.



...
Nos sabermos sós sem estarmos sós.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Roads

How can it feel this wrong?
From this moment
How can it feel this wrong?

Storm.. in the morning light
I feel
No more can I say
Frozen to myself



eu não deixei ele encostar em mim, eu sou tão sua, que merda, eu sou tão sua.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Acrilírico

Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz

Teu sorriso quieto no meu canto

Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade

Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo


(...)


Caetano

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.



Pablo Neruda

terça-feira, 6 de março de 2012

...

É. Eu achava que, quanto mais escrevesse, quanto mais livros eu fosse capaz de publicar, mais as pessoas me conheceriam. Leriam todas aquelas palavras e diriam: nossa, essa mulher é tão sincera, sua literatura é tão verdadeira, que eu nunca poderei ser desonesta com ela. Sinceramente achava que, escrevendo, eu poderia conseguir não mais me decepcionar com as pessoas. Porque a decepção, a trivial decepção, tornou-se vilã detonadora de todas as minhas intrincadas reações patológicas. Não que meus livros sejam fofinhos, deliciosos, puros, happy ends, do tipo que você imagina o amor sorridente, como um Saint-Exupéry repleto de boas intenções. Não, bem longe disso, eles são reais, e a realidade é dura. Acreditava, porém, piamente, juro, que, se as pessoas vissem esse real através das minhas palavras, não poderiam jamais mentir para mim. Ou de novo para mim. Não por qualquer tipo de constrangimento, mas por terem aprendido como é bonito falar a verdade.


Fernanda Young 
(em "As pessoas dos livros")

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Sobre o Soco e a Borboleta

Antes de mais nada, tudo. Porque, diferentemente dos ávidos antropófagos, já garantimos coisas demais . Por isso, se me falam ‘ponto’, pode ser final, g, nevrálgico, de encontro, de macumba, facultativo, de crochê, de ônibus, pacífico, de equilíbrio, aquele cara que segura a fecha dos atores, de exclamação, interrogação, de ebulição, morto, zero... Por isso, se me falam ‘dando’, pode ser dando zebra, dando de ombros, as costas, dando mancada, a volta por cima, mole, certo, a bunda, na vista, bandeira, tudo errado.. Essa é a história da borboleta que se apaixonou por um soco. O amor platônico de uma borboleta por um soco. E essa eterna sensação de estar comprando dinheiro, fritando frigideira, cavando pá, fotografando foto, amando o amor, odiando o ódio, trocando o que já se tem pelo que ainda se tem. Jáinda. Não se fazem mais antigamentes como futuramentes .


Michel Melamed.